Racismo estrutural
Análise perspicaz a respeito do patrimonialismo nacional, o autor, embora particularmente severo com Sergio Buarque, quanto à forma, conduz o leitor a uma reflexão sem freios didáticos, porquanto não se privou de denunciar os ideários preconcebidos nas esferas da elite financeira e veiculados pela argumentação dita científica, pela imprensa subornada, mas integrante, e compartilhados pela classe média cativa. Jessé Souza ousou tocar na corda sensível e ignorada.
Não pude deixar de reagir, imbuido das considerações de Léon Poliakov consoante a classificação “racial” da humaninade esquadrinhada em um dos seus livros : Le mythe aryen.
Poliakov evoca a teoria do pré-adamismo, que tendo os seus primórdios no século XVII já balbuciava no microcosmo judaico o seu dinamismo desde bem antes da Era Cristã (ou Era Comum), prosseguindo até o macrocosmo ambiente, visto que a doutrina da Unidade do gênero humano é contestada desde à sua gênese, e no seu próprio seio.
Aristóteles, IV século a.C., definiu as hierarquias humanas confinando os bárbaros à condição de escravos.
Mais adiante, no século X, Al-Masudi postulava que para a descendência dos homens não havia ancestral comum.
As teorias da Pluralidade e Anterioridade da raça humana a Adão contribuiram para um certa categorização do ser humano, pois que rechaça o tronco comum à espécie consciente. O monogenismo é suplantado pelo poligenismo.
O espírito crítico humanista, a exegese protestante, mas sobretudo a descoberta do Novo Mundo, corroboram a multiplicidade das questões insolúveis que em tempos modernos discreditam as genealogias escriturísticas em favor de outras, fruto da revolução geral das idéias, e se pretendem de argumentação cientifica com os seus contornos mais apurados no século XVIII em virtude da emergência das Ciências Humanas.
Durante a elaboração de novas genealogias, séculos XVI e XVII, a Europa, por intermédio de seus condutores de pensamento, propõe, a partir da posteridade de Noé, uma divisão tridimensional da raça humana : Os Jaféticos, europeus brancos ; os semitas, amarelos asiáticos ; os camitas, negros africanos. A diferença entre abençoado e amaldiçoado, entre casto e lúbrico, entre vicioso e virtuoso, entre bestial e humano é, doravante, compreendida e justificada mediante a narrativa bíblica do dilúvio, porquanto Jafé, o caçula, fora abençoado, de Sem nada de singular é dito ; por isso, simplesmente considerado o Pai dos semitas (termo de conforto), e Cão, o filho que viu a nudez de seu pai (difícil a interpretar),fora amaldiçoado, vítima da imprecação de Noé, e deveria tornar-se o último dos servos de seus irmãos. Cão, a quem as exegeses rabínica e protestante imputam os crimes de castração e incesto, teria imigrado para o continente africano e teria se estabelecido na África subsaariana.
Logo, à história e à mitologia foi integrado, como critério de classificação, um princípio que iria progressivamente ceder lugar à cor da epiderme. Fator fenótipo.
A doutrina do arianismo, à luz de Poliakov, não pôde ser constituída, no século XIX, sem que houvesse as grandes divisões entre “raças”, concebidas pelo pensamento da Era das Luzes precedida do Renascimento, cujas sociedades já arquitetavam as suas hierarquias e edificavam os seus conceitos.
A revolução coperniciana e o gênio de Galileu inspiraram filósofos, começando por Descartes, a subordinar a ciência emergente, reputada infalível, a uma razão; uma razão que aspira submeter à sua própria jurisdição, Deus e homens. Diz Poliakov: “Se a Terra não mais ocupa o centro do universo, o orgulho europeu em nada foi mortificado.”
Na Europa dos séculos XVI e XVII, a tese poligenista prepara o caminho para o Arianismo do século XIX, assustadoramente eugênico. Intelectuais de primeira ordem, homens de ciência, homens de cultura, filósofos, historiadores, antropólogos e, etc., quase todos apologistas do etno-diferencialismo (que conduz ao etnocídio), obraram sucessivamente para que um racismo de segunda natureza e a futura argumentação racista triunfante fossem justificados pela superioridade biocientífica e congênita.
A idéia de progresso se opunha a idéia da queda (a Idade de ouro é anterior a queda), assim, ao racismo popular, tão antigo quanto o gênero humano, infere Poliakov: “Acrescentava-se um racismo que procurava se organisar sobre fundamentos científicos, um racismo racional.”
Até onde eu posso compreender, fundamentado no “Mito ariano” de Poliakov, as alas foram, desde então, abertas ao Culturalismo norte-americano, bem discernido como racista pelo brilhante Jessé Souza.
Decerto, a meu ver, justaposto às considerações do exceptional Jessé de Sousa, contidas no seu esclarecedor livro : A ELITE DO ATRASO, o racismo cultural brasileiro sobeja do sistema escravagista de outrora e, visto que a sociogenia nacional descrita pelo autor só poderia ser contestada por negacionistas intrépidos; a sua roupagem atual, apesar de aterradora, não surpreende.
Le Père Louis (Luiz MacPontes)