Sinhá nossa Madrasta e o Bufão da corte
(Versos de Castro Alves)
O Navio Negreiro
“ Senhor Deus dos desgraçados !
Dizei-me vós, Senhor Deus!
Se é loucura... se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!”
Jamais houve, mas se houve, ainda hoje são ouvidos os gemidos ensurdecedores, graves e agudos, de uma ópera deficitária. Jamais houve, e se houve nasceu olvidada, como se houvesse nascido repudiada. Não, jamais houve abolição de escravatura no país dos contra-sensos. Muito pelo contrário, a escravatura de outrora, um dos borrões da nossa inextensa história, subsiste na sua versão mais sórdida, mais canibalesca, na sua versão econômico-moderna, primogênita do moderno mercantilismo e não menos criminosa.
Subsistem no Brasil contemporâneo escravocratas e miríades de escravos, senhores e miríades de engenhos, castelos e miríades de lavouras, palácios e miríades de favelas, porquanto abolicionistas já não se insurgem; talvez por comodidade, talvez por prevaricação, talvez por penúria de retidão.
Há um povo que sucumbe sob as patas de um poder econômico oligárquico, supranacional, que o avilta impunemente e que o humilha sem tréguas. É também um povo renegado por um certo povo, o seu próprio povo na sua expressão mais mórbida, isto é, os pequenos-burgueses, esta famigerada classe média, muitas vezes diplomada, mas quase integralmente profundamente inculta, afetada, discriminatória, fratricida e minoritária. Meretriz dos coronéis latifundiários, meretriz dos capitães da indústria, meretriz dos tubarões do comércio, meretriz viciosa dos filhotes da República.
A essa corja corrompida associam-se muitos formadores de opinião, também medianos, que, por sua vez e através da mídia, exprimem seus conceitos político-sofísticos, arrebatando, desse modo, multidões de outros cretinos perfumados em uma maré infecta de inversões de valores e de transferência de responsabilidades. Esses líderes irresponsáveis exaltam, sem sombra de decoro, a meritocracia no seio de uma nação asfixiada por ume diabólica fratura social e, como se não bastasse, exigem dos escravos modernos, à mingua de pão e de água potável, enrudecendo na grande senzala brasileira, esforços sobre-humanos.
Requerem, cinicamente, uma conduta considerada digna daqueles a quem a dignidade fora subtraída, i.e., de milhões e milhões de famílias integradas, de uma certa maneira, neste balé sinistro; já que relegadas ao seu próprio infortúnio, desesperançadas, privadas de saneamento básico, de assistência médica decente e da pseudo-instrução, purtroppo institucionalizada, densamente precária, mas que tece, lamentavelmente, o orgulho injustificável dos seus pretenciosos compatriotas, aprendizes de escravocratas, adeptos e promotores da distinção social; estes que têm uma alta opinião de si mesmos, que se julgam esclarecidos, entretanto medíocres marinheiros, prostitutos da fidalga frota nacional.
“ E ri-se a orquestra irônica, estridente...
E da ronda fantástica a serpente
Faz doudas espirais...
Se o velho arqueja, se no chão resvala,
Ouvem-se gritos... o chicote estala.
E voam mais e mais...”
“ No entanto o capitão manda a manobra,
E após fitando o céu que se desdobra,
Tão puro sobre o mar,
Diz do fumo entre os densos nevoeiros:
Vibrai rijo o chicote, marinheiros!
Fazei-os mais dançar!...”
No conteúdo ignominioso do texto de autoria jabórica nada há que possa surpreender alguns cautelosos e ajuizados "filhos deste solo", uma vez que mestre Jaboro exprime aquilo que lhe é peculiar. Exonerando-se de toda implicação atinente à entropia social brasileira cujos sintomas foram por ele mesmo assinalados em um dos seus artigos, que nos invectiva. Mestre Jaboro não poupou energia em solapar as causas das enfermidades sociais que ele próprio não cessa de contribuir a engendrar, antes se deleitou no desdenhar seus efeitos ineluctávéis, abracadabrantes, empenhando-se no ignorar suas origens plutocráticas e, via subterfúgios, visto que mestre é, desnaturou, insolentemente, a equação político-social brasileira.
Trajando o manto de uma hedionda casuística, o representante magnus da presumida classe média brasileira emergiu das profundezas do seu próprio ego e, então, munido de caneta e papel, começou a rascunhar a essência das suas ambições pessoais. Travestindo-se de cego, ou melhor, acometido de cegueira oportunista, mestre Jaboro simulou não divisar as numerosas comunidades conterrâneas e esfaimadas que votaram por algumas dezenas de reais suplementares no bolso, pois que se na carteira de alguns esses míseros reais não fazem a moindre diferença, para o estômago de muitos outros constitui um elixir que redime.
O cego improvisado enxergou, por conveniência, as represálias perpetradas por alguns encarcerados; todavia, as condições degradantes de detenção e o tratamento sub-humano que lhes é infligido são aspectos invisíveis aos cinqüenta olhos adormecidos e aos outros cinqüenta olhos evasivos do Argos Panoptes brasileiro.
O cego se apercebeu do conformismo, entretanto o imobilismo imposto pelo poder político não lhe é perceptível. Enxergou o suborno, a fraude, o logro, o policial aliciado; no entanto, os vencimentos dos policiais brasileiros, por serem decerto diminutos, lhes foram obstruídos à visão, tais quais foram para a visão da ONU os pigmeus ruandeses, cujo genocídio foi por ela mesma ignorado.
A partir da sua retina psicológica o cego viu vadios em todas as direções, porém, despercebidos lhes foram os molecotes e os molecões vendedores nos semáforos, os engraxates, os vendedores ambulantes, os muambeiros ocasionais, os biscateiros de serões e de finais de semana, os camelôs, as costureiras de horas vagas, as faxineiras, as cabelereiras e manicures a domicílio, os caixeiros-viajantes e enxames de incontáveis outros trabalhadores, carteira assinada, que sobrevivem ano após ano na prática execrável e tradicional da venda de férias no país do desemprego, no país do subemprego, no país do salário de fome. E o cego, fariseu, ainda se autoriza a emitir juízos de valor.
De tanto querer ser cego a cegueira torna-se metastásica, corrompe os outros quatro sentidos e o cego perde os olhos da razão. Tal como sob o domínio de um poderoso alucinógeno o cego em questão viu populações inteiras confinadas nas favelas, certamente por opção, por convicção, por ideologia, e isso, a despeito de tantas outras alternativas residenciais potenciais, diria o cego. Como pressentido, a viagem psicodélica do cego foi interrompida no capítulo anterior àquele que diz respeito ao custo dos alugueis praticado nas tumultuosas conurbações brasileiras e, anterior, ainda, ao capítulo que déplora a aglutinação de várias gerações promiscuindo-se sob o mesmo teto e, particularmente, àquele que denuncia a especulação imobiliária, et caetera.
“ Presa nos elos de uma só cadeia,
A multidão faminta cambaleia,
E chora e dança ali!
Um de raiva delira, outro enlouquece,
Outro, que de martírios embrutece,
Cantando geme e ri! “
Subjugado, então, pelos ditames da sua cega consciência, o cego, gigolô do sistema, viu o povo brasileiro negligenciar suas obrigações e logrou vê-lo no usufruto dos seus direitos, em plenitude de satisfação, progredindo em um Brasil triunfante Estado de direito, logo, que garante e protege os direitos fundamentais políticos, sociais e econômicos de cada cidadão: O direito à vida, à igualdade, à segurança pessoal, à segurança social, à igualdade perante a lei, à presunção de inocência, à proteção do Estado, à propriedade, à proteção contra o desemprego, a uma existência conforme a dignidade humana, ao repouso e aos lazeres, a um nível de vida suficiente para assegurar a saúde; a alimentação, o vestuário, o alojamento, a assistência médica, a segurança no desemprego; na doença, na invalidez, na viuvez, na velhice; o direito à educação gratuita e acesso ao ensino superior em plena igualdade. Extrato da Declaração Universal dos Direitos Humanos
O Cego impenitente viu a anarquia, contudo não viu que é derivada, concebida, instaurada, tolerada e nutrida; pois o cego recusa ver seus autores e seus executores. De Deodoro da Fonseca a Luis Inácio Lula da Silva, unicamente o presidente pernambucano, rei da sua época, foi visto pelo cego inveterado. E Geraldo Vandré compusera acerca de um reino que não tem rei. A detenção do poder se encontra algures, bem consolidado, acima do Planalto.
Num acesso de visão periscópica, o cego viu duques, condes, arquiduques e senhores feudais, seus próprios guias, a quem serve fielmente. Os ministérios inexistentes, viu-os todos, exceto o da justiça. Viu também taxas de crescimento muito baixas, de fato obtidas pelo empenho de dirigentes e industriais mal intencionados. Em seguida, o cego regressou ao seu estado de cegueira ardilosa em exatamente um átimo antes de poder contemplar, certamente pesaroso, a partilha dos benefícios desse crescimento entre alguns privilegiados. O trombadinha é aquele que sofreu a primeira trombada em uma sucessão de muitas outras, é quem sofreu um trombadão, um trombadaço, e que prostrado permanece, proscrito de qualquer resgate.
Após ter ressuscitado de um duradouro e conivente estado de hibernação intelectual, o cego se viu, de repente, sob a mesma gestão perene e elitista da história brasileira, mas desta feita a presidência era petista. Agora, clarividente, o cego se indigna e inicia abruptamente sua campanha política; cúpido, vende-se ao líder de desinformação e audiência nacionais e acuspinha o seu veneno ofídico contra tudo o que se chama frágil, contra tudo o que se chama débil, contra tudo o que se chama vulnerável, contra tudo o que se chama povo, contra tudo o que se chama pária e; perseverando, na qualidade de honrado filhote de mamute, assenta-se licenciosamente sobre tudo o que se chama impotente, sobre tudo o que se chama desfavorecido, sobre tudo o que se chama desarmado, sobre tudo o que se chama micro, sobre tudo o que se chama liliputiano, e goza intensamente.
Durante os intermináveis anos de sua cobarde letargia o cego dos cegos, o cego hors concours, não atentou ao clamor dos desnutridos, à adversidade dos desvalidos, ao dissabor dos proletários, às agruras dos Sem-Terra , às privações dos refugiados rurais aglutinados nas favelas e cortiços das irrespiráveis megalópoles, e ao quebrantamento de legiões de excluídos sociais.
“ Senhor Deus dos desgraçados!
Dizei-me vós Senhor Deus,
Se eu deliro... ou se é verdade
Tanto horror perante os céus?!
Ó mar, por que não apagas
Co’a esponja de tuas vagas
De teu manto este borrão?...
Astros! noites! tempestades!
Rolai das imensidades!
Varrei os mares, tufão!”
O cego reacionário, a incarnação dos ideais aristocráticos, silenciou diante dos tiranos, diante da supremacia ariana, diante do racismo quase legiferado, diante da segregação racial, diante da autoridade eclesiástica universal e romana. Emudeceu, outrossim, diante do terrorismo de Estado, diante das forças armadas — organismo repressor a serviço dos barões do capitalismo selvagem —, diante da camorra dos cartórios — concessão federal e mina de diamante —, diante da injustiça, diante da estratificação social, diante do tráfico de influências e diante da economia de mercado inspirada no arquétipo norte-americano —, fermento de precariedades.
O cego não viu o predecessor coronelista, na sua dimensão intelectualizada, de um outro presidente, o ex-sindicalista, retirar da sua cartola doirada, de prestidigitador, a reprodução de outras obras-primas internacionais de ficção econômica. E.g. O Plano Real, plano pérfido, que continua a engendrar progressiva e previsível recessão econômica no país das contrafações, o mesmo país que o prestidigitador homicida fingiu governar. Essa recessão é tangível e pode ser verificada através dos seus sintomas primeiros: o desemprego e, ipso facto, a miséria galopante.
O cego subserviente não viu que para salvaguardar o plano irrealista, "o plano irreal", foi preciso injetar capital e, para tanto, recorrer ao capital de aluguel. Foi, portanto, necessário reiterar empréstimos junto ao FMI, solidificando, dessarte, a nossa dependência externa. Uma moeda robusta é o incontornável reflexo de uma salutar economia.
Nos anos de presidência do alcunhado carrasco do povo, o já mencionado predecessor coronelista do ex-sindicalista, a política econômica do país se manteve abominavelmente escancarada à ingerência e ao capital estrangeiro, contudo o prestidigitador, duas vezes eleito presidente, julgou ser ainda insuficiente a pouca-vergonha e fez aprovar várias emendas na Constituição com o intuito neoliberal e facínora de provocar uma avalanche de multinacionais estrangeiras em terras brasileiras, porquanto "O penhor da liberdade conseguimos conquistar com braços fortes". Mas o cego se encontrava atado às cadeias da sua cúmplice indolência, e o impune algoz do povo prosseguiu sua cruenta investida.
Apadrinhado por Washington e por outros potentados proprietários da amaldiçoada e pairadora pérola azul, plebiscitado pela já mencionada classe presunçosa, doutrinada e não politizada, o verdugo brasileiro ousou favorecer alguns grupos financeiros no processo de privatização de empresas estatais e, particularmente, no âmbito das rodovias e estradas de rodagem, dos bancos, da telefonia brasileira , etc.
Cartéis, holdings, monopólios, oligopólios, uma verdadeira oligofrenia contagiante. O prestígio do abastado latifundiário superabundava entre os crédulos emergentes, tributários dos caciques da República. Entretanto, o cego mercenário, mergulhado num estado de coma profundo, nada viu, nada ouviu, nada sentiu e, por via de conseqüência, não reagiu. Hoje, liberto, desperto e mordaz vitupera as massas famintas que votaram por um punhado de pão, uma bolsa-família, batizando-os de vagabundos e imbecis.
O cego descarado, após ter recobrado a vista, desbocou-se em sujidades, orientado, quiçá, pela sua memória seletiva. Descobriu então um governo mais ignóbil do que todos os pregressos, por isso retalhou o povo brasileiro com adjetivos depreciativos e, desprovido de toda ética, sustentou, acintosamente, não ser o brasileiro gente solidária. Meditava, quem sabe, ele, nos seus correligionários medianos, neste povo iletrado e egocêntrico que menospreza e que sabota quando discrimina e quando vota, o bem-estar do seu próprio povo, a quem desdenha, qualificando-o pejorativamente de povinho. Pelo que onde nunca houve segurança nacional só pode haver solidariedade popular.
Jamais houve abolição de escravatura no país dos antiabolicionistas e, se Deus fosse brasileiro, teria que coabitar com demônios, porque o deus da geena brasileira é o diabo disfarsado em classe média.
O povo brasileiro é livre. Foi alforriado. Mentira ! Oxalá fosse o nosso cego um cego fidedigno! Teria ele instado o povo ao boicote às urnas e à insurreição popular.
Oh cego demagogo! "Babilônia, a grande prostituta", que fornicou com os reis da terra , com os proxenetas de colarinho branco, na maior pornochanchada de todos os tempos. Tua nudez será castigada.
“ Fatalidade atroz que a mente esmaga!
Extingue nesta hora o brigue imundo
O trilho que Colombo abriu nas vagas,
Como íris no pégalo profundo!
Mais é infâmia demais !.... Da etérea plaga
Levantai-vos, herois do novo mundo!
Andrada ! arranca esse pendão dos ares !
Colombo! fecha a porta dos teus mares !”
Il Babbuino (Luiz MacPontes)