A pena capital
Ao longo da história das civilizações a aplicação da pena de morte, maquiavelicamente inspirada e velhacamente adotada, tantas vezes em razão de custos irrelevantes, jamais se revelou uma medida eficaz no combate contra a criminalidade, jamais se mostrou dissuasiva na peleja contre o crime considerado digno de punição capital, isto é, pela a aniquilação da vida daquele a quem a autoria de um tal ato é imputada, quando mesmo em se tratando de crime de morte.
Conquanto sejam inúmeros e freqüentes os desacertos judiciários dos quais padecem as modernas civilizações, ainda se ousa discutir, irrefletida e repetidamente, acerca da pena do derradeiro suplício; como se coubesse alguma sorte de justiça sob o sol, como se sob a diligência de uma potestade tricefálica, legislativa-judiciária-executiva, pressupostamente judiciosa e justiceira, não houvesse ocasião para disfunções e nem espaço para o ser humano vazar a sua essência.
Tantos são os menos avisados; aqueles que adormecem com a convicção de que muitas das suas expectativas podem ser materializadas sob o patronato de modernos paradigmas de soberania social e que acordam com a cândida certeza de que algumas nações deste conspurcado mundo respiram justiça e transpiram retidão.
Ora, no âmago do ser humano coabitam o sustentáculo político e a sombra ideológica dos sistemas. A humanidade traduz-se, outrossim, pela soma das suas próprias incoerências. Fazer apologia da pena de morte consiste em fazer supurar uma dessas incoerências.
Entretanto, e para que toda proporção seja adequadamente preservada, a questão da legalização da pena de morte nem sequer deveria ser debatida no seio de países inteiramente desprovidos de ministério dito da Justiça, ou melhor, em países nos quais o ministério da iniqüidade predomina, nos quais subsiste violenta estratificação social. Pronunciar-se contra ou a favor da instauração da pena de morte no Brasil é como injetar penicilina em um membro gangrenado, isso advem de mais uma destas miopias intelectuais, ou ainda de mais uma destas aberrações conceptuais, que podem perverter a razão e fazer degenerar os orgãos sensoriais.
Se houvesse pena de morte no Brasil, quem, Miss Agnoia, seria efetivamente condenado a perecer pelas mãos dos verdugos, funcionários estatais, no exercício da sua macabra função? Alguns eleitores primários ousariam propor que uma concessão de exploração do sinistro mister fosse cedida a multinacionais estrangeiras, pretextando uma certa garantia de qualidade e um custo de mão-de-obra autóctone extremamente módico.
Quem, precisamente, apodreceria no corredor da morte à espera da execução legalizada? O médico que assassinou sua faxineira após tê-la estuprado, ou a faxineira que matou o médico logo após ter sido por ele estuprada? O filho delinqüente de uma meretriz com um medíocre traficante de drogas que assaltou e matou um marmiteiro, pai de quatro bastardos esfomeados, ou um estagiário em psicologia, filho de um preclaro desembargador, que de tanta cocaína na cabeça perdeu-a e assassinou uma escort-girl em um quarto de um motel à beira mar? O excluído social ou o honrado e opulento latifundiário — proprietário de terras e de homens —, que ceifa, amiúde, milhares de vidas com um banal manuseio de esferográfica ? O depauperado cidadão ou o próspero cidadão? O fidalgo caucasiano ou o proletário negro — objeto de abjeta discriminação?
É indispensável, antes de toda e qualquer reflexão acerca do tema que parece nos entreter emocionalmente já há alguns anos, quando menos, que haja no Brasil uma veia moralizadora, o mínimo de decência judiciária, de eqüidade social, de imparcialidade administrativa e, enfim, de ministério de justiça digno de tal nome. O problema é, sem nenhuma possibilidade de não o ser, de fundo; no entanto, muitos são os que perseveram em considerá-lo de maneira periférica. Não seriam esses, porventura, os paridos da puta ignorância, os paridos do Brasil, a puta que nos pariu. Não seriam esses os filhotes de um outro ministério ainda hoje inexistente dentro dos limites territoriais do *Impávido Colosso"? O Colosso prostrado eternamente em berço esplêndido?
Victor Hugo, no seu incessante combate contra a pena de morte na França, nunca recusou emprestar o seu prestigioso nome para que cada pleito de graça viesse a ser coroado de êxito, antes depositou todo o seu talento de romancista, de poeta e de orador, no receptáculo da abolição da pena capital.
“Saibais isto, quem quer que sejais, legisladores ou juízes, aos olhos de Deus, aos olhos da consciência, o que é crime para o indivíduo é crime para a sociedade.” Victor Hugo
“Não matarás! A estas punições ímpias que fazem duvidar da humanidade quando golpeam o culpado e que fazem duvidar de Deus quando golpeam o inocente! Não! Não! Não! Ainda não chegamos a esse ponto.” Victor Hugo
“Ontem, mais um fusilado; o assassínio é uma chaga. Combater-se-ia o
assassínio pelo assassínio.” Victor Hugo
“Quem abre uma escola fecha uma prisão.” Victor Hugo
Il Babbuino (Luiz MacPontes)
P.-s. Sem esquecer, Miss Agnoia, de endereçar minhas distintas saudações ao iluminadíssimo Jaboro, recente descobridor de um Brasil recentemente corrupto e submerso na recente corrupção de um governo federal a serviço de uma oligarquia impunimente violenta e igualmente recente.
Seu Jaboro, o Bufão da corte, o Cego, o Surdo-mudo de outrora, invisível, hoje papagaio alienado, peão das alvas elites (fundamentalmente racistas), capataz dos intocáveis. Quem nunca o viu, agora o vê.