O Dia das Mães e o amor
Além do conceito de inconsciente pessoal freudiano, desde sempre acreditado, via de regra, pela Psicologia Médica, Jung, o pai da Psicologia Analítica, postula a existência de um segundo sistema psíquico, um inconsciente de cunho impessoal e universal extremamente profundo, intitulado “Inconsciente Coletivo”― receptáculo de arquétipos.1
A Psicologia Analítica, a despeito de pretender explicar a hermética complexidade do ser humano através do inconsciente coletivo confinando, portanto, Deus em uma estrutura psíquica, não deixa de ser sui generis quando evoca a universalidade dos arquétipos.
Os arquétipos, de inspiração e tradição filosóficas,2 são definidos na pioneira perspectiva junguiana, precisamente, como um modo potencial de expressão do inconsciente coletivo; são, portanto, formas preexistentes de pensamento. Eles exprimem modelos rudimentares de comportamento e de representações3, porque neles está encerrada a memória ancestral da experiência humana desde a sua gênese. Os arquétipos são semelhantes a uma sorte de matriz organizadora das imagens arcaicas e universais4. Todos os inconscientes individuais estão arraigados no inconsciente coletivo.
No tocante à Imago Dei, o próprio Jung, persuadido de que toda consideração acerca de Deus advem de projeções humanas e de antropomorfismo, admite, em certa altura da sua aventura científica, ser uma poderosa imagem arquetípica e, enigmaticamente, ser indicadora de transcendência5. Luc Beaubien6, Doutor em filosofia, sustenta, acertadamente, que Jung não somente cria na transcendência; mas, igualmente e sobretudo, na existência da imanência do divino.7
Diz Jung: “A Psicologia Analítica só nos serve para encontrar a vereda que conduz à experiência religiosa, permitindo a realização da nossa totalidade; mas, ela mesma, não constitui essa experiência propriamente dita e, tampouco, pode provocá-la. Sabemos, todavia, pela experiência, que a Psicologia Analítica pode nos ensinar a adquirir a atitude capaz de favorizar um encontro com a realidade transcendente.”8
A imagem de Deus, arquétypo precípuo do inconsciente coletivo, é, entre tantas outras, uma das pressupostas imagens arcaicas e universais9 que manifestadas nos sonhos, nas crenças, nos mitos, nos contos, nos folclores, nos ritos10 et caetera, são susceptíveis de penetrar o consciente e influenciar a bagagem perceptiva de indivíduos, tanto os “normais” quanto os neuróticos. Um poderoso arquétipo pode tomar possessão de um indivíduo e provocar-lhe uma psicose.11
A Imago maternal, considerada particularmente ativa desde a infância do ser humano, projeta qualidades supra-humanas sobre a mãe antes de, novamente, instigada pela realidade exterior, imergir-se no recôndito do inconsciente12.
Uma das imagens maternas gregas, identificada entre as principais divindades femininas, encarna em Deméter ― mãe mitológica e provedora por excelência13―, o amor materno incondicional, que sobreexcede a maternidade biológica.14 O arquétipo da mãe exprime o amor ideal.15
A mítica Isis, feiticeira do panteão egípcio, divindade-mãe e fonte de vida, personifica, igualmente, o amor materno incondicional,16 no entanto, coube a Têmis, uma outra divindade helênica ― com os seus olhos vendados, na mão direita a espada; na esquerda a balança ― inspirar no inconsciente coletivo o arquétipo de justiça imparcial, usurpando aYahwé uma das Suas tipicidades transcendentes.
O amor materno, estimado impoluto, estóico e distinto, constitui um prístino tabu, a fortiori no ocidente, desde que Maria, a mãe do homem, anthropotókos17 , Jesus de Nazaré, foi proclamada, no primeiro Concílio de Éfeso18(431A.D.), mãe de Deus ,Theotókos.19 A imaculada Virgem Maria, logo άτεκνη ― sem filhos ―, precede a imaculada Virgem Maria presumível mãe do Messias, i.e., do Ungido prometido ao povo de Israel por eleição, e a toda a humanidade por vocação. Fez-se do amor de Maria o protótipo do amor materno sem desdouro e, por extensão, o amor sem desdouro tornou-se intrínseco a todas as mães.
Na reputação tradicional de Fátima, epitetada Zahra ― A Resplandecente ―, mãe de todos os infalíveis e filha do infalível profeta do islã, Mohamed, por ele denominada rainha das mulheres do paraíso; ainda muito jovem desposada com o infalível imame Ali IbnAbi Talib, é homologada, no âmbito islâmico, uma das representações mentais tendo por vocação habitar todos os “nascidos de mulher”.
Fátima é assimilada, em todo caso no império Aquemênida, a Anaïtis, provedora das águas fecundas e deusa grega das fontes ― a grande fonte que alimenta todas as outras fontes. A filha do mensageiro de Alá é comparada ao rochedo de Zim, do qual Moisés20, ao feri-lo duas vezes com o seu cajado, fez com que dele, água jorrasse.
Embora Fátima tenha gerado quatro filhos, importa notar que, na tradição xiita, ainda a qualificam, em arabe e em arabo-persa, de betul, o mesmo sentido dos adjetivos betulat cananeu e betulá hebraico, i.e.,virgem. O ramo de trigo, emblema da Virgem, também lhe é consagrado.21
Fátima, desde o II século hegírico, é celebrada como a mulher das mulheres que, ao nascer, teria sido saudada por Sara, mulher de Abraão, e por Miriam, irmã de Moisés ― a ignorar o anacronismo e a considerar a lenda de Fátima. Fátima foi sagrada deusa, senão a Grande Deusa.22
Ainda hoje,Fátima, marco mulçumano de todas as virtudes femininas, nascida entre 604 e 615 do calendário gregoriano, anterior ou posterior a revelação corânica, é rememorada por ocasião do Dia das Mães em todo o domínio islãmico e, especialmente, no Irã e em alguns outros países onde se pratica um islamismo à predominância xiita.23 Fátima é considerada um modelo exemplar de mulher na qualidade de filha, de esposa e de mãe.24 Em Fátima jazem o arcabouço e os paradígmas de inocência, de pureza e de virtude.25A filha amada do profeta Alá encontra-se repertoriada no elenco das imagens arquetípicas.26
Na maioria esmagadora dos países de confissão maometista, o Dia das Mães coincide, fizeram-no coincidir, com os derradeiros e tenebrosos dias de inverno precedentes ao equinócio da primavera.
A originalidade dessa escolha parece cingir as mitologias de outrora quando nas festividades religiosas as divindades da fertilidade eram homenageadas, e a esperança de renovo incendiava os corações com a emergência de raios solares fulgurantes e pressagiadores de dias férteis.
No decurso da solenidade celta e lustral de Imbolc, dedicada à divindade primordial Brigit, personificação da Magna Mater; entretanto, deusa da fertilidade e das luzes, as mães de família deleitavam-se ao serem prestigiadas com grande fausto. O culto a Brigit, igualmente padroeira dos druidas, dos bardos e dos vates, prenunciava o despertar da natureza com o repontar da primavera.27
Na antiga Grécia, as mães eram comemoradas publicamente durante as cerimônias cultuais primaveris em louvor a Reia, a Grande Mãe, mãe de Zeus e de todos os deuses do Olimpo; Gaia, também homenageada durante eventos de mesma ordem, representava a Terra-Mãe. O culto prestado às deusas da fertilidade era praticado nos idos de março na Grécia insular, peninsular e continental, assim como em toda a Anatólia.28
Em Roma antiga, as Matronas, mães de família e cidadãs romanas, eram festejadas durante a Matronalia, festividades vernais em honra ao nascimento de Roma e ao renascimento da primavera.29
A celebração da maternidade imbuída de um espírito de adoração vem atravessando milênios; por razões políticas sofreu alguns colapsos regionais, ordinariamente esporádicos, contudo, ainda ilesa no imaginário popular, tem sido, progressivamente, vivificada urbi et orbi.
No século XX, em 1918, os EUA oficializaram o Mother’s day. Desde então, as mães começaram a ser, anualmente, comemoradas em plagas norte-americanas no segundo domingo do mês de maio. Alguns países soberanos reproduziram o figurino yankee.
De sorte que as festividades comemorativas, no que tange às mães, instauradas ou institucionalizadas na antiguidade, versão hierática30, subsistindo na modernidade, versão laica, mas não peremptoriamente laica, porquanto contam com vultuosa adesão das comunidades religiosas, não parecem ter despertado e não despertam ínfima perplexidade, nem individual, nem coletiva.
Percorrendo todas as épocas e sempre federado ao tecido social, o Dia das mães, descendente direto de elucubrações originárias de povos, nações, civilizações e, geralmente, incrementado por políticas mercantilistas, continua a ser internacionalmente comemorado em detrimento de cada desafortunado que não conheceu aquela que o teceu na obscuridade do ventre, e de todo o desiludido cuja mãe não faz jus a homenagens, senão ao respeito à dignidade humana vinculado à compaixão ― esse nobilíssimo sentimento ―, que excede e que limita . A representação mental suplanta, frequentemente, o mérito.
Assim, havendo resignação, talvez por necessidade inexorável de conforto psicológico em permanecer, placidamente, adormecido sob a égide de idéias preconcebidas, de credos e de dogmas, muitas vezes oriundos de uma interpretação tendenciosa de textos “sagrados”; mas, principalmente, erigidos sobre a distorção arbitrária do texto escriturístico, cuja resultante disserta a respeito de uma enxurrada de impertinentes valores judeo-cristãos, cristalisa-se, por conseguinte, o trágico e circunstancial afastamento do ideal espiritual preconizado por El-Shadday31desde tempos imemoriais.
Que seja mediante os ditames da teórica doutrina dos arquétipos ou, ainda, pela adesão inconseqüente aos estabelecidos, desfigurados e efervescentes valores judeo-cristãos, a sacralização do amor materno, opus hominis, é responsável por carradas de conflitos interpessoais, de litígios familiares, de violências sociais e de hediondas injustiças que, ubiqüitárias, oprimem impotentes e poderosos pelos rincões das latitudes e longitudes das diversificadas sociedades. Tais injustiças são, mormente, perpetradas por representantes impuníveis de instâncias e jurisdições das quais a humanidade é tributária.
“É melhor sofrer uma injustiça do que cometê-la”. Sócrates
Desvencilhar-se desse coquetel explosivo requer laborioso mister que, de per si, subtraído a uma reflexão conseqüente, portanto depurativa, não terá por corolário carpos comestíveis.
O Dia das Mães agrega todas as mulheres havendo feito uso efetivo dos seus orgãos reprodutores dentro de um perímetro ideológico e laudatório da têmpera maternal, que lhe é, deploravemente, reconhecida como um apanágio excelso e exclusivo, conquanto desventuradamente sancionado pela a insensatez, embaixatriz de um valor universal ― o amor materno ―, este, edificado com matéria prima subjetiva e extraída, sistematicamente, da subjacente e implacável avidez humana de latria.
Cabe lembrar que, mesmo quando uma determinada mãe desaponta gregos e troianos, traindo o perfil do imaculado amor que lhe é, incautamente, impresso à pele e à alma, não seria ela estigmatizada, antes pelo contrário. Atendendo aos paroxismos de idealização e de indulgência reivindicados pelo esteriótipo do amor maternal, haveria de ser, sim, até mesmo pelos seus insólitos semelhantes de educação eminentemente heterodoxa, levianamente psiquiatrizada, desculpada e compreendida.32
Engendrar um ser humano a partir da matéria microscópica, ascender à maternidade, não confere, ipso facto, o status de boa, pura e santa à mulher nenhuma, porquanto a índole, traço distintivo entre indivíduos, não constitui um fármaco metabolizável durante a gestação. Oxalá não consinta Yahwé33 que o materno-centrismo, de caráter pesarosamente mundialista, eleja domicílio sempiterno na mentalidade contemporânea.
“Haverá mãe que possa esquecer seu bebê que ainda mama e não ter compaixão do filho que gerou? Contudo, ainda que ela se esquecesse, Eu jamais me esquecerei de ti!”34
à luz do que fora impresso a partir do cálamo do profeta Isaías sobre pergaminho, e atentando para o verseto supracitado, percebe-se a intenção diáfana do autor de fazer sobressair, dentre os sujeitos verificáveis no período composto em apreço, o único capacitado a garantir, a título de protagonista em uma interação amorosa, a infalibilidade e a perenidade do Seu concerto espontâneo; de outra maneira, o único apto a ratificar a inquebrantabilidade do laço ressonântico entre Ele mesmo e os seres conscientes.
Certos judeus, setenta eruditos de Alexandria, segundo alvitra a tradição, ao traduzirem o texto massorético para o grego ― obra hercúlea intitulada Septuaginta ―,35 debruçaram-se sobre Isaías 49 ;15, privilegiando o emprego do optativo potencial grego utilizado para exprimir o que aconteceria no cumprimento de uma suposta condição. Trata-se, portanto, de uma apódose correlativa a uma prótase expressa ou implícita.36 Sabe-se, outrossim, que a hipótese apresentada na oração concessiva não pode impedir o propósito manifestado na oração principal.
Isaiah 49:15 mh. evpilh,setai gunh. tou/ paidi,ou auvth/j tou/ mh. evleh/sai ta. e;kgona th/j koili,aj auvth/j eiv de. kai. evpila,qoito tau/ta gunh, avllV evgw. ouvk evpilh,somai, .
A concessividade se dá quando o fato expresso na apódose se mantém, é asseverado, a despeito da realização do que é expresso na prótase, além disso, quando se trata de uma construção concessiva eventual, logo, de sentido hipotético, o conteúdo expresso na proposição nuclear é considerado verdadeiro, enquanto que na oração concessiva pode ser verdadeiro ou falso, real ou suposto.
Em Isaías 49;15, texto original, verifica-se o emprego da conjunção coordenativa ~G37(gam) com valor subordinativo concessivo equivalente à yKi( ~G38 (gam ki), simples modalidade da idéia condicional39, traduzida nesse versículo, comumente, para o português por “ainda que” e para o francês por “même si”.
Em gam ki a idéia de quoique (embora) é formalmente expressa, e quoique, por seu turno, reveste estreitamente a noção de causalidade.40
A construção hebraica em questão, com simples gam, seguida de um verbo flexionado no tempo infectum hebraico41, de dimensão aspectual, encoraja o tradutor a utilizar o conectivo embora, conjunção concessiva que, quando acompanhada de um verbo conjugado no presente do subjuntivo, introduz uma concessão factual42: as mães se esquecem (embora se esqueçam) dos filhos que ainda amamentam, premissa confirmada pelo fator epistemológico que, nesse caso, consente sobejamente com a possibilidade de esquecimento.
As conjunções subordinativas “ainda que” e “même si”, sucedidas de subjuntivos, introduzem concessivas eventuais, construções estas priorizadas nas traduções portuguesas e francesas de Isaías 49;15, mas preteridas pelos tradutores da Bíblia King James que optaram, quando menos no que diz respeito à original inglesa e à versão francesa, por uma oração coordenativa assindética homóloga a uma oração concessiva factual. Veja-se que a infracitada resposta à interrogativa: “Porventura pode uma mulher esquecer-se tanto de seu filho que cria, que não se compadeça dele, do filho do seu ventre?”, exibida em estilo paratático, é inequívoca : “Sim, elas podem (são capazes de) esquecer-se.”
“Can a woman forget her sucking child, that she should not have compassion on the son of her womb? yea, they may forget, yet will I not forget thee.” Bíblia King James, Isaías 49;15.
“Une femme peut-elle oublier son enfant qu’elle allaite, et ne pas avoir compassion du fils de son utérus ? Oui, elles sont capables d’oublier, cependant je ne t’oublierai pas.” Bíblia King James, Isaías 49;15/versão francesa.
Dirão alguns, com propriedade, que os seios entumecidos de colostro e posteriormente de leite materno, fenômeno mnêmico inibidor de qualquer pendor olvidadiço e antídoto contra qualquer sentimento fortuito de abandono, testificam, durante todo o período de lactação, acerca da dependência do recém-nascido em relação à sua mãe.
Encontram-se, porém, nas Escrituras, malgrado os corriqueiros casuísmos, diversas passagens ilustrativas da natureza humana e alguns versos que, esclarecedores, buscam relembrar à humanidade a condição sobremaneira terrenal das mães, dentre as quais algumas supliciam, atualmente, os seus filhos à guisa das filhas de Israel, tantas outras segundo as craveiras da modernidade.
“E quanto à mulher israelita mais gentil e delicada entre todas as de teu povo, tão fina e educada que não ousaria tocar a terra com a planta do pé, seu olho se tornará maligno para com o marido a quem ama e para com o próprio filho ou filha, não lhes entregando nem a placenta do ventre nem os filhos que gerar; porquanto a verdadeira intenção dela é devorá-los secretamente durante aquele horrível cerco e em meio aos grandes sofrimentos que teu adversário desferirá sobre as tuas cidades”. Deut. 28; 56-57
“E sucedeu que, passando o rei pelo muro, uma mulher lhe bradou, dizendo: Acode-me, ó rei meu senhor. E ele lhe disse: Se o Senhor te não acode, donde te acudirei eu? Da eira ou do lagar? Disse-lhe mais o rei: Que tens? E disse ela: Esta mulher me disse: Dá cá o teu filho, para que hoje o comamos, e amanhã comeremos o meu filho. Cozemos, pois, o meu filho, e o comemos; mas dizendo-lhe eu ao outro dia: Dá cá o teu filho, para que o comamos; escondeu o seu filho.” II Reis 6;26-29
"Vê, Senhor, e considera: a quem trataste assim? Irão as mulheres comer o seu fruto, os filhinhos que amimam? Acaso se matará no santuário do Senhor sacerdote e profeta?" Lamentações 2;20
Assim sendo, cada leitor é compelido a constatar, bem como o não versado em hermenêutica, que Yahwé não sugere qualquer similitude entre o Seu amor e o amor que experimenta, pelo fruto das suas entranhas, aquela que deu à luz. Longe disso, a redação propõe uma distinção entre o amor espiritual e o amor material, entre a performance afetiva do Pai celeste e a performance uterina de mãe terrestre, predisposta, quase sempre, a proteger o seu rebento cujo cordão hormonal poucos se permitem imaginar rompido. Todavia, se porventura o improvável viesse a realizar-se, o impossível realizar-se-ia ? Não, em nenhuma circunstância ! No amor espiritual de Yahwé não há espaço, nem para esquecimento, nem para abandono. “Deus é espírito [...]”.43
Ora, Yahwé argumenta em Sua própria defesa, advoga em causa própria, sublinhando, enfatizando, na qualidade de realidade ontológica insondável e em virtude da Sua Hipóstase44 divina, Sua exclusiva incapacidade de esquecimento e Sua exclusiva inaptidão ao abondono. “[...]Deus é amor”45, enquanto que a essência humana é incontestavelmente uma outra ― fundamentalmente dissemelhante.
O Ser supremo ama com amor supremo, metafísica antagônica à natureza do amor materno ― o químico amor ― do qual as mães são prisioneiras e a que alguns deliberaram batizar de instinto ― o instinto maternal. Se é verdade que ele existe ― jaz a dúvida ―, seria uma panacéia profilática que o próprio Deus teria, prodigiosamente, preconcebido e inoculado no programa biológico determinante da identidade feminina, aspirando, talvez, a preservação provisória e catastrófica da espécie tirânica, predadora, autodestrutiva e desesperadamente inclinada à aniquilação. Diz o Sábio dos sábios: “Eis a única conclusão a que cheguei : Deus criou o ser humano justo, mas este se deixou envolver por muitas astúcias e ilusões!”46
Yahwé não cometeria a aberração de comparar o que não é comparável, i.e., o Seu amor imparcial, desestabilizador de toda tentativa de apreensão intelectual e revelado, particularmente, pelo projeto místico de resgate da humanidade agonizante, ao amor matermo, francamente o mais propenso a efusões de “juízo parcial”― o monstrengo sem juízo ― que terroriza sub sole, na esférica Necrolândia.
Mesmo na festejada incondicionalidade do amor materno não há plenitude, antes limitações, haja vista os instrutivos episódios que superabundavam em tempos idos e os que superabundam no mundo hodierno.
Um dos cenários, dos triviais o mais trivial, não menos devastador,fere qualquer pretensão humana de amar com amor incorruptível, uma vez que certas genitoras, onustas de “incorruptibilidade passional”, dão testemunho do oposto quando implicadas em uma relação de poder onde a banalização das dissenções faz a pauta e, então, possuídas por um sentimento de propriedade, não raro, e desejosas de vingança, embriagadas de um intuito solapado, por vezes apregoado, de ajuste de contas com aquele que, a princípio, candidato a namorado foi eleito genitor ― o pai das vítimas sacrificadas ao deus ego ―, entendem abusar da vulnerabilidade da sua idolatrada progenitura em prejuízo da integridade mental e física da mesma.
Em conformidade com a narrativa criacionística, após a falta reputada como original, apenas o instinto de preservação das espécies pode ser expressamente identificado neste cosmos inferior, pelo que na disparidade entre o sagrado e o profano, entre o amor, ἀγάπη47, impenetrável de Yahwé e os irresolutos amores temporais, há arbítrio para assinalar a condição do Ser e a condição dos seres.
A desproporção de conteúdo entre Um e outros não pode, decerto, ser atenuada, senão pela pujança do Verbo encapelando os pélagos da alma dos seres dissidentes ― a raça humana ―, a mesma que não é suficientemente idônea, nem para conhecer, nem para assimilar, nem para comunicar, na ausência da indústria catártica do Demiurgo, aliás, O Tetragrama48, aquele amor fundamental tornado exótico à inocência primordial. “ E ainda que eu distribuísse toda a
minha fortuna para sustento dos pobres, e ainda que entregasse o meu corpo para ser queimado, e não tivesse amor, [ ἀγάπη] , nada disso me aproveitaria.”49
Incontáveis são os que crêem, considerando a incondicionalidade do amor de Yahwé, poder estabelecer um paralelo entre o amor divino e o amor materno, não obstante, o amor incondicional de Yahwé atua em simetria com a Sua justiça, ao passo que o amor materno serve, amiúde, de propulsor e catalisador concomitantes à dinâmica de injustiças. O amor incondicional, quando segregado da justiça, não é mais do que um quinhão prosaico que, conforme mencionado supra, na abstinência de comunhão com ὁ Θεός50, indissociável de ὁ λóγος51, que estava junto a ὁ Θεός e que era ὁ Θεός52, cada presunçoso Homo sapiens, a duplo cromossoma x , é, com effeito, habilitado a desfrutar e a transmitir. O amor de Deus não faz acepção de pessoas.53
A maternidade não encerra uma alquimia natural que, pela soma dos seus condões, logra transmutar o substrato humano em sublime realidade, se assim o fosse, haveria, para tantos, cruento duelo entre desatino e bom senso.
Ademais, o apóstolo Paulo reitera : “[...] Não há um justo, nem um sequer.”54 Destarte, não há homem, Anthropos55, capacitado a “amar” com amor equânimo; ilucida, providencialmente, um dos significados do substantivo hebraico tsedek56, ao ofertar-se ao homem de boa vontade como uma preciosa joia semântica, quando ele pensa amor. Tsedek, sua polissemia devidamente apreciada, significa, bem assim, imparcialidade.
O substantivo latino “iustitia”57 merece, igualmente, uma atenção deveras especial. Quando o padre, doutor da Igreja e exegeta confirmado, Jerônimo de Estridão (347-420 A.D.), que legou à posteridade a Vulgata ― versão latina da Bíblia―, transpunha os textos veterotestamentários da língua-fonte, o hebraico, para língua-alvo, o latim, não se descuidou ao traduzir, inúmeras vezes, sopesando a dimensão contextual de cada perícope, tsedk por iustitia, substantivo feminino que em uma de suas múltiplas acepções, denota eqüidade, æquitas.58 Eqüidade, por sua vez, traduz-se em português por justiça, integridade, retidão, igualdade, justa proporção e imparcialidade.
BHS-Bíblia Hebr. Stuttgartensia - Ant. Test. Hab. 2;34“ `hy<)x.yI Atðn"Wma/B, qyDIÞc;w> [...]”
“[...] o` de. di,kaioj evk pi,stew,j mou zh,setai.. ” Biblia LXX, Septuaginta. Hab. 2;4
“[...] justus autem in fide sua vivet.” Biblia Vulgata Latina, Habacuque 2;4
“[...] mas o justo pela sua fé viverá.” Biblia Fiel. Hab. 2;4
“O justo viverá pela fé”, ou melhor, o imparcial viverá pela fé, pois que, no exercício da parcialidade a fé propende ao esmorecimento, dando margem a um outro cânone de justiça (juízo), o da justiça própria59, que reduz o Eterno aos sinistros limites do carbono, porquanto subestima o teocentrismo e consagra o antropocentrismo.
O Ser imparcial e legislador do universo, não podendo fazer emendas à Sua Lei, cláusula pétrea, não se furtou ao Seu atributo maior, do qual derivam todos os outros, todavia, comprouve-se, desde a criação do mundo, na elaboração de uma catástase misericordiosa destinada à raça que haveria de transgridir os Seus divinos estatutos. “Àquele, [O Mashia’h]60, que não conheceu pecado61, ele o fez pecado por nós; para que, nele, fôssemos feitos justiça de Deus.”62
De outra maneira, porque houve cumprimento da Lei imutável e eterna na pessoa do Mashia’h, cada humano goza de impunidade assente na remição propiciada pela imparcialidade de YHWH63, já que com o Seu beneplácito ,Mikhael64, uno inter pares, “escândalo para os judeus e loucura para os gregos”65 , não hesitou corroborar o Seu próprio amor, patenteando a Sua própria imparcialidade, proclamando a imparcialidade do Pai no Filho, quando tomou o lugar do infrator e, na figura de bode expiatório, cumpriu a pena que recaía sobre a humanidade. “Mas ele foi ferido por causa das nossas transgressões, e moído por causa das nossas iniqüidades; o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e pelas suas pisaduras fomos sarados.”66
A cura procede da fé, visto que a graça fora, com portentoso êxito, conquistada, contudo, o amor imparcial provém do alto, e já não mais há entrave inexpugnável para o desígnio revolucionário do Altíssimo.
“Pois, se amardes os que vos amam, que galardão tereis? Não fazem os publicanos também o mesmo? E, se saudardes unicamente os vossos irmãos, que fazeis de mais? Não fazem os publicanos também assim?”67
A harmonia entre a incondicionalidade e a imparcialidade do amor divino denuncia, via contraste, o amor materno ― distensão de apego à geometria variável ―, o mais carnal de todos os amores idealizados, celebrados e degustados pelo gênero humano.
Le Père Louis (Luiz MacPontes)
P.-s.
“Cada teoria é a expressão mais verdadeira da psicologia pessoal do seu autor, e nela está contida, necessariamente, uma certa profissão de fé”. C.G. Jung.
. Le concept d’inconscient collectif. (1936)In Jung, Collected Works of C. G. Jung, Vol.9, 1ère partie, 2nd ed., Princeton University Press, 1968, 451 p. (p. 42-53), (§87-110)
2. Platão. (diálogo socrático em Fédon) Forma ininteligível. A idéia é o reflexo de um mundo ideal formado de puras idéias.
°. Xenocrates define a « Forma ininteligível » de Platão : a idéia é a causa que serve de modelo aos objetos cuja constituição está inscrita eternamente na natureza.
3. Au sujet des archétypes de l’inconscient collectif et en particulier de l’idée d’anima. (1936) In Jung, Collected Works of C. G. Jung, Vol.9, 1ère partie, 2nd ed., Princeton University Press, 1968, 451 p. (p. 54-72), (§111-147), & Jung, LES RACINES DE LA CONSCIENCE, Buchet Chastel, Paris 1971, (p.61-85)
4. 100% Jung, éditions Eyrolles, Viviane Thibaudier
5. L'EXPÉRIENCE MYSTIQUE SELON C.G. JUNG.
La voie de l'individuation ou la réalisation du Soi.pag. 99
Luc Beaubien/Université Laval (Québec) Philosophiae Doctor (Ph.D.)
6.Luc Beaubien- Philosophiae Doctor (Ph.D.)
Faculté de philosophie
Université Laval-QUÉBEC
7. 01.L'EXPÉRIENCE MYSTIQUE SELON C.G. JUNG.
La voie de l'individuation ou la réalisation du Soi.pag. 321
Luc Beaubien/Université Laval (Québec) Philosophiae Doctor (Ph.D.)
8. C.G. Jung. L’Herne, pag.253
Toute science n'est qu'instrument et
non but en soi. La psychologie
analytique ne nous sert qu'à trouver
le chemin qui mène vers l'expérience
religieuse et qui nous permet de
réaliser notre totalité. Mais, elle
n'est pas cette expérience elle-même
et elle ne la provoque pas non plus.
Nous savons toutefois, et cela par
expérience, que la psychologie
analytique peut nous apprendre à
acquérir l'attitude qui peut
favoriser une rencontre avec la
réalité transcendante.
9. In Jung, Collected Works of C. G. Jung, Vol.9, 1ère partie, 2nd ed., Princeton University Press, 1968, 451 p. (p. 92-94), (§172-175), ), & Jung, LES RACINES DE LA CONSCIENCE, Buchet Chastel, Paris 1971, (p.110-113)
10. O encontro com o arquétipo materno: Imaginário e
simbologia em Lya Luft- pag. 19. Eliane Ferreira de Cerqueira Lima
Doutoranda em Letras Vernáculas (Literatura). Faculdade de Letras da UFRJ
11. Archétypes de l’inconscient collectif. 1935/54-In Jung, Collected Works of C. G. Jung, Vol.9, 1ère partie, 2nd ed., Princeton University Press, 1968, 451 p. (pp. 3-41), (§1-86), & Jung, LES RACINES DE LA CONSCIENCE, Buchet Chastel, Paris 1971, (pp.11-59)
12- Au sujet des archétypes de l’inconscient collectif et en particulier de l’idée d’anima. (1936). In Jung, Collected Works of C. G. Jung, Vol.9, 1ère partie, 2nd ed., Princeton University Press, 1968, 451 p. (p. 54-72), (§111-147), & Jung, LES RACINES DE LA CONSCIENCE, Buchet Chastel, Paris 1971, (p.61-85)
13. Diosas, un oráculo transpersonal, Martha Beatriz Carranza, pág. 22, parág.2
14.Ibid. parág.4
15. Aspect psychologique de l’archétype de la mère. 4. L’aspect positif du complexe de la mère. I. La mère. (1938) In Jung, Collected Works of C. G. Jung, Vol.9, 1ère partie, 2nd ed., Princeton University Press, 1968, 451 p. (p. 92-94), (§172-175), ), & Jung, LES RACINES DE LA CONSCIENCE, Buchet Chastel, Paris 1971, (p.110-113)
16. Isis l'Eternelle: Biographie d'un mythe féminin, Florence Quentin
17. ἄνθρωποτόκος-Transliterado-Anthropotokos
18. Los inicios del Éfeso (431) y la datación de la carta de Cirilo Alenjandrino a Acacio Berense. Páginas 152, 153
19. Θεοτόκος-transliterado-Theotókos
20. La légende de Fatima, fille de Mohamed, volume 2, num.1, pp. 63-71, Charles Virolleaud
21. Ibid.
22. Ibid.
23. La Réorientation, pag. 7, Seymour Hersh, New Yorker, 2007
24. Fatima est Fatima, l’idéal universel féminin, pag. 205, Ali Shariati / traduzido do árabe pela equipe da editora Albouraq
25. La légende de Fatima, fille de Mohamed, Charles Virolleaud volume 88 , núm. 1, pp. 160-161
26. OJBS : Online journal of Baha’í Studies Volume1(2007), 137-170 : ISSN 1177-8547 / URL: http:/www.ojbs.org / The authority of the feminine and Fatima’s place in an early work by the Bab1, pp. 161-162. Dr. Told Lawson / University of Toronto, Institute of Islamic Studies.
27. Artigo- Fête des Mères - histoire, origine, évolution de sa symbolique, dates de célébration et idées de cadeaux
28. Ibid.
29. Ibid.
30. Ibid.
31. Transliterado-El-Shadday- Dieu tout puissant, (Deus todo poderoso), Dictionnaire de la Bíble Hebraïque Marchantd Ennery
32. La Violence des femmes: Le dernier tabou /Marie-Claire Roy / Flash, n° 37, sous le titre « Mères dévoyées – « Maltraitance ? Que fait maman ? »
Le dessin de SLB est également extrait de ce numéro.
33. Nome do Deus de Israel transliterado do Tetragrama hebraico para o alfabeto latino
34. Isaías 49 ;15, Bíblia King James
35. Antigo testamento grego_250-280 A.C.
36. HA. 872; G. 1327 ff
37. The book of Isaíah (John Oswald) Selon Gesenius, hebrew grammars § 160, a conjunçâo hebraica gam, em Isaías 49 ;15, é virtualmente idêntica ao condicional gam ki.
38. yKi( ~G:, exprime explicidamente a idéia de “embora”. Grammaire de l’hébreu biblique, Père Paul Jüon, p. 525, §171
39. Paul Joüon, Grammaire de l’hébreu biblique, § 171 a
40. Neves, p. 865, 2000.
41. Imperfeito hebraico. Ação não realizada / Havendo somente dois tempos hebraicos se faz obrigatório considerar o modo, o aspecto e o contexto para compreensão e leitura adequadas.
42. – PUC_Rio- Certificação Digital N° 1012087/CA, capítulo 2, pag. 29 Neves 2000
43. João 4;24, Bíblia portuguesa corrigida Fiel
44. υπόστασις -transliterado-Hipóstase- substance, réalité – // III en parl. de l’intelligence, de la penseé, etc. Aristt. Mund. 4,2, etc., ou à φαντασία , Artém. 3,14 ; ou fond d’une chose, p. opp. à la forme, Luc. Paras.27 ;Sext. M. 9,338 ;NT. Hbr.4,3. Dictionnaire Grec-Français Le Grang Bailly- Anatole Bailly.
45. I João 4 ;8, Bíblia portuguesa corrigida Fiel
46. Eclesiastes 7;29
47. ἀγάπη-transliterado-agápe- Affection, Spt. Eccl. 9,1; particul. amour fraternel, Phil. 1,283; NT. Luc. 11,42; II Cor. 5,14. Dictionnaire Grec-Français Le Grang Bailly- Anatole Bailly
48. O Tetragrama - יהוה- transliterado para o afabeto latino = YHWH
49. I Coríntios 13 ;3, Bíblia portuguesa corrigida Fiel
50. ὁ Θεός -Transliterado para o português = Deus
51. ὁ λóγος -Transliterado para o português= a palavra, o verbo etc.
52. João 1;1, Bíblia King James atualizada
53. Atos 10;34, Bíblia portuguesa corrigida Fiel
54. Romanos 3;10, Bíblia Almeida revista e atualizada
55. άνθρωπος -transliterado-antropos- 1 opp. aux dieux, IL. 3,442 // 2 opp. à ανήρ // 3 opp. à γυνή, IL 9,134; // 4 en gén. homme, être humain. Dictionnaire Grec-Français Le Grang Bailly- Anatole Bailly.
56. qd,c, -transliterado-tsedek- innocence, justice, équité, vérité, bonté, faveur, grâce. Dictionnaire de la Bíble Hebraïque Marchantd Ennery. Raiz triconsonantal, característica das línguas semitas, צדק
57. iustitia-transliterado-justiça- a.s. Cic., La Justice, l’équité, bonté. s. Novitius seu dictionarium latino-gallicum
58. æquitas-, atis, s. Equité, justice, intégrité, droiture, égalité, juste proportion. ― animi. Cic. Impartialité
59. Pois, não reconhecendo a justiça que vem de Deus e buscando estabelecer a sua própria, não se submeteram à justiça de Deus. Romanos 10; 3, Biblia King James atualizada
60. מָשִׁיחַ - transliterado-Mashia’h. Messias, o Ungido
61. Pecado- peccatum- i, n. (pecco), faute, action coupable, crime; Virg. En. 10, 32/ faute, erreur. Dictionnaire latin-français, Félix Gaffiot, 1934
62. II coríntios 5;21, Bíblia portuguesa corrigida Fiel
63. O Tetragrama consonantal - יהוה-transliterado para o alfabeto latino =YHWH, nome do Deus de Israel, vocalizado Yahwé, Yehova etc.
64. מִיכָאֵל -transliterado- Mikhael
65. I Coríntios 1 ;23-, Bíblia portuguesa corrigida Fiel
66. Isaías 53;5, Bíblia portuguesa corrigida Fiel
67. Mateus 5; 46;47, Bíblia portuguesa corrigida Fiel